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O fruto do caos

10 out

Coringa 2

      Em todo meu tempo analisando e admirando as Histórias em Quadrinhos, em especial aquelas que são adaptadas ao cinema, o filme Coringa (2019), do diretor Todd Phillips, merece especial atenção. Ambientado numa Gotham City dominada pela desigualdade social e estagnação econômica, magistralmente descrita em cenas coloridas com primor técnico, defende-se abertamente a tese do filósofo Jean-Jacques Rousseau de que o homem é produto do meio.

      Em “A Origem da Desigualdade entre os Homens”, publicado em 1755, Rousseau afirma que toda a noção de desigualdade limita-se aos princípios de propriedade particular criados essencialmente pelos homens e a insegurança de se viver com outros homens. E é nessa temática que o personagem central vive suas dores diárias.

      Arthur Fleck, um comediante fracassado, com transtornos psiquiátricos, magistralmente interpretado e encarnado por Joaquin Phoenix, cuida da sua mãe e tem como principal rival a sociedade como um todo. Nada que faz é suficientemente bom o bastante para convencer os outros de que ele é um ser humano que se esforça e precisa de cuidados. Assim como tantas outras representações do cotidiano de qualquer lugar, seres invisíveis sobrevivem com suas dores e sentimentos.

      Fleck tenta (con)viver com suas limitações e tem um emprego como palhaço numa empresa prestadora de serviços. Cuida de sua mãe, que também tem sérios problemas mentais, e vive cercado de pessoas que simplesmente não se importam com absolutamente nada que ele faça. Ele é mais um sobrevivente invisível de uma grande metrópole repleta de contradições e patologias sociais.

      Enquanto Gotham City imerge em problemas políticos, violência, criminalidade, os ricos vão acumulando bens e a sociedade se destoa doentiamente na segregação entre os privilegiados e os que têm a vida cerceada por problemas mundanos.

      Pelos moldes da teoria de Rousseau, os seres humanos bons por natureza são corrompidos pelos hábitos sociais. Dessa forma, percebe-se que a corrupção social pode tornar as pessoas nefastas. Na indecência de se possuir cada vez mais em terreno machucado pela irracionalidade e violência, as sobras humanas vão se inflando de desespero, solidão, marginalidade, preconceito. Assim, são criadas leis para normatizarem o crepúsculo do caos.

      Coringa é a representação da insatisfação aos ditames sociais, com a persistência do Estado em regrar até o último respiro dos humanos, de levar todos a uma consequência: a do desespero em não ter com quem contar. Coringa é um palhaço, metaforicamente feito de palhaço, por quem o Estado deveria zelar. Ele representa a parcela da sociedade que não conseguiu mais ficar presa ao conceito do bom selvagem de Rousseau. Ele representa o caos e a carnificina pelos quais as virtudes são massacradas dia após dia pela elite que alcançou a luz no inacabável túnel. É um filme louvável, causador de uma reflexão sobre o ser e o ter. Certamente, é o marco de uma revolução das adaptações de Quadrinhos ao cinema.

O insustentável peso da decepção

25 out

decepcao

Viver é um constante desafio. Os percalços da vida calejam sempre a alma da gente de maneira que consigamos nos tornar cada dia mais fortes. Temos escolhas e estas podem nos mostrar caminhos cada vez mais tortuosos, mas, certamente, todos eles dão em algum lugar. Há gente que diz que quanto mais difícil for a caminhada, mais engrandecedora será a conquista.

            Nossa vida é repleta de felicidades, tristezas, amores, ódios, amarguras, dores, satisfações, pecados… mas nada é mais cruel do que a decepção. Esse sentimento é ululantemente devastador. A decepção só vem de quem a gente gosta. Ela só aparece quando pessoas nas quais depositamos toda nossa confiança nos desapontam. E o mais duro de tudo é que muitas vezes as pessoas tinham a real intenção de nos desapontar.

            Nada é mais belo do que saber conviver com as diferenças. Os seres humanos são mágicos nisso. Os outros animais são, instintivamente, iguais. Praticamente nascem sabendo o que fazer. Nós não. “O homem é produto do meio”, disse Rousseau. Invariavelmente, o ambiente o leva a ser ou a fazer. Contestável ou não, aquilo que somos pode ser relacionado ao lugar no qual vivemos.

            Condenado a ser livre, o ser humano faz o que bem entende, sempre depositando a mea culpa no livre-arbítrio. Assim, há vários caminhos: alegrias, tristezas e decepções. O mais triste é que as decepções são, quase sempre, frutos da nossa vontade. Parece que sabemos que algo está errado e mesmo assim continuamos.

            A decepção chega quando menos se espera. Traiçoeira, leva tudo o que temos num piscar de olhos. A recuperação é lenta e dolorida. A ferida demora a cicatrizar… quando cicatriza. A gente vai resistindo, resistindo e percebendo o quanto as pessoas são antitéticas. Ao mesmo tempo em que praticam bondade conseguem ser maldosas.

            Quiçá chegue um tempo em que não nos decepcionemos mais pela simples razão de não nos darmos a chance de esperar. Esperar no sentido mais amplo. Quem espera pode se perder. E essa perda levará sempre à decepção. Sigamos a reflexão deixada por Machado de Assis: “Não há decepções possíveis para um viajante, que apenas vê de passagem o lado belo da natureza humana e não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio”. Oxalá!

 

 

Todo mundo tem um Temer na vida

30 ago

               traição amigo

Quem nunca teve um amigo muito legal que, numa hora de desespero, traiu a confiança? Aquele amigo que sorri, que sempre aparece todo faceiro, nos faz rir e aconselha a isso ou aquilo… de tão companheiro, você conta todos os seus segredos e ainda pede a opinião para saber quais os caminhos a tomar.

           Sabe aquelas vezes em que se está triste, precisando de um ombro amigo e só um nome vem à cabeça? Quando se está junto normalmente é só risada e a barriga até dói? Pois é! Todo mundo tem um amigo assim. Mas parece que o tempo vai passando e a sociedade corrompendo o indivíduo até que ele começa a pensar nele próprio. Esquece tudo o que passou e as coisas boas que viveram juntos para buscar apenas os objetivos pessoais.

            Ah! O poder corrompe e já que o “homem é o lobo do homem”, é muito mais claro perceber que os anseios pessoais são colocados à frente da ética e da moral. O que é ser humano na mais fiel vertente niilista? O que um ser humano faz para ser um bom selvagem, como Rousseau defendeu em uma de suas teses?

            Se também somos produto do meio, o que nos faz resistir às tentações e elevar exemplos de honra e dignidade? Instituições sociais como família, religião, língua são suficientes?

            O que vemos, hoje, no Brasil, é exemplo claro de busca pelo poder a qualquer custo. Todo mundo tem um Michel Temer na vida e sem mais nem menos ele se revela. O mais dolorido de tudo é que esse Temer se julga dono da verdade e se intitula o salvador de tudo e de todos.

            Todo mundo tem um Michel Temer na vida. Talvez ele seja colocado para que provemos para nós mesmos que somos fortes e resilientes. Nenhum fardo é maior do que aquele que somos incumbidos de carregar. Quantos “Temers” aparecem no nosso caminho como obstáculos? “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”. E quantas pedras!!!

            Estamos revelando ao mundo um péssimo exemplo de como não fazer política. O impeachment da presidente eleita Dilma é uma afronta a todos os princípios democráticos e, acima de tudo, éticos. Tinha um Temer no meio do caminho. E o pior de tudo é que todos nós temos um monte de “Temers” no nosso caminho. Amigo da onça!