Em todo meu tempo analisando e admirando as Histórias em Quadrinhos, em especial aquelas que são adaptadas ao cinema, o filme Coringa (2019), do diretor Todd Phillips, merece especial atenção. Ambientado numa Gotham City dominada pela desigualdade social e estagnação econômica, magistralmente descrita em cenas coloridas com primor técnico, defende-se abertamente a tese do filósofo Jean-Jacques Rousseau de que o homem é produto do meio.
Em “A Origem da Desigualdade entre os Homens”, publicado em 1755, Rousseau afirma que toda a noção de desigualdade limita-se aos princípios de propriedade particular criados essencialmente pelos homens e a insegurança de se viver com outros homens. E é nessa temática que o personagem central vive suas dores diárias.
Arthur Fleck, um comediante fracassado, com transtornos psiquiátricos, magistralmente interpretado e encarnado por Joaquin Phoenix, cuida da sua mãe e tem como principal rival a sociedade como um todo. Nada que faz é suficientemente bom o bastante para convencer os outros de que ele é um ser humano que se esforça e precisa de cuidados. Assim como tantas outras representações do cotidiano de qualquer lugar, seres invisíveis sobrevivem com suas dores e sentimentos.
Fleck tenta (con)viver com suas limitações e tem um emprego como palhaço numa empresa prestadora de serviços. Cuida de sua mãe, que também tem sérios problemas mentais, e vive cercado de pessoas que simplesmente não se importam com absolutamente nada que ele faça. Ele é mais um sobrevivente invisível de uma grande metrópole repleta de contradições e patologias sociais.
Enquanto Gotham City imerge em problemas políticos, violência, criminalidade, os ricos vão acumulando bens e a sociedade se destoa doentiamente na segregação entre os privilegiados e os que têm a vida cerceada por problemas mundanos.
Pelos moldes da teoria de Rousseau, os seres humanos bons por natureza são corrompidos pelos hábitos sociais. Dessa forma, percebe-se que a corrupção social pode tornar as pessoas nefastas. Na indecência de se possuir cada vez mais em terreno machucado pela irracionalidade e violência, as sobras humanas vão se inflando de desespero, solidão, marginalidade, preconceito. Assim, são criadas leis para normatizarem o crepúsculo do caos.
Coringa é a representação da insatisfação aos ditames sociais, com a persistência do Estado em regrar até o último respiro dos humanos, de levar todos a uma consequência: a do desespero em não ter com quem contar. Coringa é um palhaço, metaforicamente feito de palhaço, por quem o Estado deveria zelar. Ele representa a parcela da sociedade que não conseguiu mais ficar presa ao conceito do bom selvagem de Rousseau. Ele representa o caos e a carnificina pelos quais as virtudes são massacradas dia após dia pela elite que alcançou a luz no inacabável túnel. É um filme louvável, causador de uma reflexão sobre o ser e o ter. Certamente, é o marco de uma revolução das adaptações de Quadrinhos ao cinema.