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A morte do presidente

29 maio

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Este é um texto de ficção. Qualquer comparação com a realidade será mera coincidência.

Os dias eram pálidos, escuros, parecem que coloridos nas tonalidades da dor e da incerteza. Ouviam-se, de todos os cantos, os sons da solidão, como o vento assobiando na janela, as portas rangendo, o pisar duro e pesado dos transeuntes. Não havia sorrisos. Ninguém olhava com fé para os olhos do outro. Era como se todas as energias vitais estivessem no fim. Tudo era descrença. Até que, de repente, o sol crestou. Do nada, apareceu iluminando a todos e matando a cor cinza que preenchia a vizinhança. Ninguém até então sabia o que estava acontecendo.

Em outro plano, um sino escandaloso toca desesperadamente. Lúcifer, sentado à mesa para o seu desjejum pergunta a um serviçal o motivo de tanto barulho. Até que um assessor de confiança entra na copa, esbaforido, e murmura a frase que tirou o Cão de seu equilíbrio: “o presidente do Brasil morreu”.

O Maligno não quis mais saber nem do pão que ele mesmo amassou e pôs a mão na cabeça. Uma mistura de desânimo e impotência tomou conta do líder do Inferno. Pela primeira vez desde sua emancipação, não sabia o que fazer. Todos os meses ele tem a árdua tarefa de elaborar o cronograma de castigos diários a Hitler, Mussolini, Stalin, Hussein, Milošević… mais um e ele não daria conta. Já havia cometido um engano na carreira por abrir uma igreja, única vez que, nessa era, teve uma conversa com Deus. Machado de Assis ressaltou muito bem essa parte. Mas chegou a hora. Lúcifer teria de subir aos Céus e conversar com Deus.

O Ardiloso preparou suas coisas, pediu a outro assessor que preparasse o elevador divino para a duradoura viagem de ascensão. Numa pequena pasta feita com couro tratado de racistas, levou fichas com os dados pessoais do presidente e toda a trajetória de vida. Queria estar bem amparado para argumentar com o Senhor do Mundo. Despediu-se sorrateiramente dos seus liderados para que ninguém pudesse colocar à prova sua capacidade de liderança. Assim foi rumo ao seu propósito.

Durante a viagem, pensava, pensava, pensava e escolhia cada palavra a ser dita. Como se fosse um primeiro encontro. Não poderia errar. Tudo deveria estar dentro do previsto. Desolado, queria que tudo desse certo. Tinha um pedido importante a fazer. Um pedido, não! Uma solicitação por ofício.

O trajeto estava chegando ao fim. Alvas nuvens começaram a surgir. O clima fresco já era predominante. Quando o grande portão apareceu, as mãos de Lúcifer começaram a suar. Ele, que estava acostumado a lidar com tanta gente fora do prumo, estava muito agitado.

Pedro já o esperava na entrada. Com o olhar duvidoso de sempre, lançou a ironia peculiar:

– Saudades, desertor? Ou precisa de consultoria?

O Maldoso riu, pois já esperava essa atitude do santo.

– Sempre espirituoso, Pedro! Na verdade, quero conversar com Ele. Fazer uma solicitação.

– Já sei do que se trata. Ele comentou comigo. Tinha a certeza de que você viria. Aliás, desde que saiu, só vem para pedir. Mas Ele atende a todos os que precisam. Mas nesse seu caso, mais fácil ele lançar mais pragas no Egito. Pode entrar. Aguarde na sala de espera de número 17.

Havia muitas salas, porém a sala 17 era uma sala especial. Nela, sempre estavam as almas e divindades infortunadas, duvidosas, e, na maioria das vezes, malignas. Compreensível ao entendimento do Coisa-Ruim. No momento, a ele compeliam todas as características. “Pedro não erra”, pensou.

O grande portão se abriu e o Cramunhão andou, passo a passo, observando olhares desconfiados e comentários murmurados dos anjos, almas e outros santos que ali descansavam em meio a todos os serviços rotineiros. De um lado, Santo Expedito desenvolvia uma Oração-Spam de resposta aos pedidos para se ganhar na loteria. De outro, São Sebastião gritou de antemão:

– Ahhhh! Se ele aceitar seu pedido, mais uma flechada em mim. Mas o que seria uma flechada a mais para mim, o São Sebastião?!

O visitante riu e foi para a sala determinada. Depois de alguma espera, o anjo-secretário disse que Deus o aguardava. Ao adentrar a porta, viu o Supremo de costas, olhando por uma janela, alisando a barba. Ao centro, na parede atrás da mesa, havia o Olho da Providência e nele o visitante se inspirou para a primeira fala:

– Satisfações, minha Divindade! É por esse símbolo da providência que hoje venho aqui pedir sua intercessão.

O Senhor olhou de esgueio, deu uma risada sarcástica e disse:

– O presidente do Brasil morreu e é isso que traz você aqui. Estou certo?

– Sempre certo. Nunca errou! É por isso que vim. Diplomaticamente venho dizer que: não quero ele lá. Já tenho problemas suficientes para resolver. Não te dou trabalho, só faço o que precisa ser feito para o maniqueísmo continuar. Nem falei nada quando os caras lá de baixo colocaram as aglomerações religiosas como serviços essenciais em plena pandemia. Mas o fato é que não mereço ele lá.

Alisando a barba branca, a resposta foi contundente:

– Ele é seu! Fez coisas que até eu duvidei!

– Mas ele só fala em seu nome, o tempo todo. Nunca me chamou para nada. Fez coisas que, confesso, eu mesmo faria, mas… “Deus acima de todos”, ele sempre vociferou.

– E essa: “Vamos dar armas para o cidadão de bem se proteger”. Armas não são coisas minhas. Usaram indevidamente meu nome nisso. Esse é o lado mau do livre-arbítrio, rebateu o Senhor.

– Então! Ali está o “bem” na frase. E o bem fica aqui. Lá, comigo, é só maldade… O senhor recebeu Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King, tanta gente boa… eu só recebo abacaxis. Aliás, abacaxi será usado nessa semana no castigo do Trump.

– Por isso mesmo, nobre! Aqui ele não pode entrar. Usou meu nome indevidamente o tempo todo. Ganhou eleição falando coisas que eu jamais diria ou defenderia. Não vou misturá-lo às almas boas que aqui estão. Já recebi o filho dele que passava horas mandando notícias falsas para as pessoas desinformadas. Coitado, foi um alienado! Morreu de inanição por ficar direto no computador. Recebi também o motorista que parecia uma lavanderia industrial de tanto lavar dinheiro. O coitado foi morto pelos próprios amigos da milícia pouco antes do momento em que a Polícia Federal o encontraria. “Amigos”. Ai, ai! A Damares entrou direto. Ela não fazia por mal. Era assim mesmo. Como o parvo de Gil Vicente. Eu perdoei todo mundo. Agora o chefão já é demais. Tudo o que aconteceu de errado foi por culpa dele.

– Entendo todo seu esforço, Mestrão! Eu recebi o ministro do Meio Ambiente e ele, por incrível que pareça, adora queimada. Fica no fogo, ardendo, o tempo todo. Mas precisamos chegar num ponto comum. Talvez chamar o Noé de novo, mandar aquele dilúvio e só salvar os bichos? E o purgatório? Não seria um bom lugar por enquanto?

– No purgatório? De jeito nenhum! Lá já está o Lula há 5 anos. Sentadinho no cantinho da reflexão. Todos os dias, peço reflexões sobre BNDS, Petrobras, Palocci e José Dirceu. Imagine colocar os dois juntos? Isso aqui é que se tornaria um inferno.

A discussão continuou por horas e horas, sem nenhum acordo. Os dois sempre foram cordiais nas discussões, sempre respeitando os posicionamentos. Céu e Inferno são muito democráticos. Há de se manter o equilíbrio.

O Senhor continuou buscando alternativas e argumentos para convencer Lúcifer a aceitar a alma do presidente e disse:

– “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. Olha o que ele falou! Você acha que vale entrada aqui para o céu?

– Lógico que não! Mas também não mereço ele lá. Ele disse que queria usar o pau-de-arara contra um cara lá na Terra. Nem eu seria tão cruel de usar ferramenta tão obsoleta. Senhor, ele levou uma facada e se salvou! Não merece a redenção?

– Facada?

– Deixe para lá esse assunto. Mas precisamos de fato encontrar uma alternativa.  Ele ainda não entendeu que morreu. A alma está vociferando contra o Congresso e o STF. Está dizendo até que vai trocar o ministro que for se alguém o contradizer.

– Mas é mais difícil para alguns acreditarem que morreram. Ele ainda mais. Pior que não conseguiremos nem debater com ele.

– Verdade! Ele não gosta muito de debates. Mas o fato é que ele precisa de um lugar para ficar. Calma aí! E o umbral? Ele pode ficar vagando por lá.

– Genial!

 Após o grito de alegria, o Supremo aperta o botão vermelho na mesa e diz ao anjo-secretário:

  – Chame o Kardec. Agora!